Do “Rap das Armas” à prisão de MC Poze: A cronologia da criminalização do funk no Rio de Janeiro

Do “Rap das Armas” à prisão de MC Poze: A cronologia da criminalização do funk no Rio de Janeiro

Gostou? Compartilhe

Por décadas, o funk carioca é o espelho da realidade das favelas, traduzindo em batidas e letras as dores, os sonhos e os desafios de comunidades sistematicamente marginalizadas pelo Estado. Mas, sob o olhar do aparato jurídico-policial e de parte da sociedade, esse mesmo reflexo foi constantemente interpretado como ameaça: uma afronta à ordem, um grito que deveria ser silenciado. A criminalização do funk no Rio de Janeiro – de Cidinho e Doca, nos anos 1990, à recente prisão de MC Poze do Rodo em 2025 – revela um padrão que vai além da música: é um projeto de controle social, travestido de combate ao crime, que seleciona quem pode ou não ter voz.

Ao rotular funkeiros como “falsos artistas”, associá-los ao tráfico e enquadrar suas letras como “apologia ao crime”, as autoridades não apenas tentam conter uma expressão cultural legítima, mas reforçam um processo histórico de criminalização da pobreza. Essa postura reflete uma política de segurança pública que age de forma seletiva, atacando sintomas sem enfrentar causas, e que encontra na cultura popular um inimigo conveniente. Afinal, é mais simples reprimir o baile do que debater as estruturas que perpetuam desigualdades.

Neste contexto, a repressão ao funk não é um caso isolado, mas parte de uma engrenagem que silencia vozes dissidentes, regula os corpos periféricos e limita o direito à cultura – uma engrenagem que, enquanto reprime o som das favelas, mantém surdos os ouvidos para os clamores que ecoam dessas comunidades. Entender a história da criminalização do funk é, portanto, desvendar as camadas de um Brasil que insiste em negar a sua própria diversidade e pulsação cultural.

Linha do Tempo: Criminalização do Funk Carioca (1995–2025)

1995 – Cidinho e Doca e o “Rap das Armas”

Os MCs Cidinho e Doca foram convocados a prestar esclarecimentos sobre a música “Rap das Armas”, que mencionava diversas armas de fogo. A canção foi proibida nas rádios, mas anos depois ganhou notoriedade internacional ao ser incluída na trilha sonora do filme “Tropa de Elite” (2007).

1999Proibição, controle e estigma: como o funk foi rotulado como problema de segurança pública no Rio de Janeiro

O ano de 1999 marcou um divisor de águas na história dos bailes funk no Rio de Janeiro. Após a tragédia no Clube Chaparral, em Bonsucesso, onde três adolescentes morreram, o então juiz da Vara da Infância e Juventude, Ciro Darlan, determinou a proibição temporária dos bailes funk em todo o estado. A decisão foi baseada em preocupações com a violência e a associação dos bailes a atividades criminosas, especialmente o tráfico de drogas.

2000 O início da repressão oficial aos bailes no Rio

O governador sancionou uma lei estadual regulamentando os bailes funk, impondo restrições severas e exigências como autorização prévia da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública para a realização dos eventos. Esses acontecimentos consolidaram uma política de criminalização e estigmatização do funk carioca como um espaço de suposta “apologia ao crime”, o que moldaria a repressão ao gênero na década seguinte.

2005 – Indiciamento de 13 Funkeiros

Em 2005, a Polícia Civil do Rio de Janeiro indiciou 13 funkeiros sob acusações de apologia ao crime e associação ao tráfico. Entre os indiciados estavam MC Frank, MC Sabrina, Mr. Catra, MC G3, MC Colibri, MC Doca, MC Cidinho, MC Mazinho, MC Tan, MC Cula, MC Menor do Chapa, MC Duda, MC Sapão, MC Menor da Provi, MC Duda do Borel, MC Tevez, MC Renê e MC Da Rajada. As acusações baseavam-se em letras que, segundo as autoridades, exaltavam o tráfico de drogas e a violência.

2010 – Prisões no Complexo do Alemão

Durante a ocupação do Complexo do Alemão, a polícia prendeu os MCs Smith, Tikão, Max e Frank, acusando-os de fazerem apologia ao tráfico de drogas por meio de suas músicas. As autoridades alegaram que os artistas promoviam o tráfico e incitavam a violência em suas letras.

2017 – Acusações contra Mr. Catra

Mr. Catra enfrentou novas acusações de apologia ao crime após a divulgação de um vídeo em que supostamente enaltecia a facção criminosa Família do Norte (FDN). O rapper fez uma apresentação no estado do norte do Brasil e afirmou que não conhecia a FDN, tampouco tinha ligação com a organização criminosa ou com seus integrantes.

2025 – Prisão de MC Poze do Rodo

Em 29 de maio de 2025, MC Poze do Rodo foi preso por agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) em sua residência no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ele é investigado por apologia ao crime e por envolvimento com o tráfico de drogas. As autoridades alegam que seus shows, realizados em áreas dominadas pelo Comando Vermelho, são financiados pela facção e que suas músicas exaltam o tráfico e confrontos armados, ultrapassando os limites da liberdade de expressão.


O funk é muito mais do que ritmo ou batida. É denúncia social, é grito de sobrevivência, é forma de contar histórias que raramente ganham espaço na mídia tradicional. Nas letras, nos bailes, nas rimas, estão as dores, os amores, as injustiças e as conquistas de uma parcela da população que resiste diariamente à marginalização. Quando o Estado escolhe enxergar apenas o que há de incômodo para sua ordem – ignorando o contexto histórico de exclusão, racismo estrutural, desigualdade econômica e ausência de políticas públicas – ele perpetua uma lógica perversa de criminalização da pobreza e de censura cultural.

O funk precisa ser ouvido e aceito. Não como concessão de uma sociedade que insiste em colocá-lo à margem, mas como reconhecimento de sua importância na construção da identidade cultural brasileira. É preciso abrir espaço para o diálogo, para o entendimento de que arte é expressão, mesmo quando desconforta. Censurar o funk é negar a complexidade da vida nas favelas, é silenciar vozes que têm muito a dizer. A discussão sobre o limite entre liberdade de expressão e apologia ao crime deve ser feita com seriedade, sem generalizações, preconceitos ou simplismos que colocam artistas no banco dos réus apenas por narrar o que veem.

O Brasil precisa aprender a ouvir o funk. Não como caso de polícia, mas como caso de cultura. Não como ameaça, mas como potência. Não como desordem, mas como resistência.